A pessoa por trás da beca: o que um Advogado não é

Nalgumas vezes, dentre tantas, termino por me perguntar por que advogo. Sempre que me inquiro, surge em minha lembrança a fala de Fausto: “nunca falareis a um outro coração, se o próprio não vos inspirar”.


O que me inspira é a construção da imagem mítica do Advogado que guardo em mim, a mesma construção da imagem do Advogado que precisa viver para além do imaginário pejorativo que numa medida ruim o meio externo desenvolveu ao longo de tempos.


O estereótipo do sujeito influente, com conexões que lhe permitem sucesso e a falta de compromisso com a moral, é um triste reducionismo da real natureza do advogado. A música de Dave Frishberg, My Attorney Bernie, dá perfeito exemplo da miserável condição a que o advogado foi rebaixado pela necessidade monstruosa de se provar o valor pelo poder:


I’m impressed

With my attorney Bernie

I’m impressed

With his influential friends

He’s got very big connections


Mas onde está o poder? Na rede de conexões que se faz por vias transversas? Na busca pela melhor causa, pela notoriedade e por aparecer a qualquer custo como o sujeito que resolverá o problema? Onde está a noção de poder quando o observador externo deseja escolher o advogado para lhe representar?


Será o advogado Bernie o melhor modelo para os padrões atuais? Será que Bernie resolverá mesmo o problema? Será que Bernie é de fato um advogado? Tenho pra mim que não.


É possível ser um Advogado e viver como um Advogado entre tantos “Bernies” ou entre tantos modelos “Bernies” que povoam o inconsciente popular? Tudo o que Bernie consegue fazer é ensinar o que um advogado não é, já que “conhecemos todas as coisas pelo seu oposto”¹.


A máscara Bernie ou imagem social Bernie se sustenta sobre um sistema de valores que foram sedimentados a partir da incapacidade de viver a autenticidade de si mesmo. Para Bernie o valor está fora, para o Advogado, o valor está dentro. Bernie numa certa medida é a “terra devastada” da advocacia que precisa ser restaurada e trazida à vida “com a transcendência de todos os sistemas conceituais”².


Por princípio, um Advogado necessita ser discreto, precisa ser coerente, precisa ser confiável, precisa ser ele mesmo um instrumento de mudança na sociedade, precisa ser compassivo e não há espaço para essas características no universo distorcido pela noção pedestre de poder.


O verdadeiro poder consiste na capacidade de alterar o meio a partir de si, na disposição de lutar por uma causa em que se acredita, no exercício da tolerância para com o outro, no desempenho de uma defesa como se ela fosse a bandeira de sua própria dignidade pelo simples motivo de que é o instrumento de proteção da dignidade de outro. Essa é a própria jornada do Graal, a lenda de Parsival, a busca pelo sentido detrás do aparente: a conquista da compaixão. Compaixão entendida não como caridade ou aceitação de virtudes menores, mas como a ideia sentida dentro de nós que nos impõe a tarefa de fazer o certo, não apenas o que queremos. A compaixão como oposto do egoísmo, como limitadora do ego que se projeta para fora e busca na casca (Bernie) a definição de si.


A pessoa por trás da beca é a pessoa que necessita descobrir seu papel e sua função na jornada de desenvolvimento próprio e do outro a quem ela toca. O advogado, por essência, toca infinitas possibilidades de realizações e de escolhas, portando a especial capacidade de influenciar as escolhas de outros a partir das suas.


A escolha de ser um Advogado é a escolha de se construir a si mesmo dia após dia, de acreditar que a justiça é mais do que um sistema escalonado de leis (na maioria das vezes inobservado afrontosamente em nome de uma justiça vazia de sentido em si mesma), de suportar a autoindagação diária, aos moldes do que ensinou Santo Agostinho, e impiedosamente olhar-se nos olhos para aguardar a resposta: Por que advogo?


Advogo porque há necessidade de dizer orgulhosamente: essa foi minha opção primeira, sou Advogado e isso é o maior dos qualificativos. Advogo porque acredito que o advogado é um ativista antes de tudo, consciente por obrigação, e comprometido por coerência.


Então, é preciso lembrar de Bernie, ele é útil para definir, por negação, a afirmação, vez que sem negação a afirmação não existiria. A sabedoria consiste em discernir uma da outra. Também por isso advogo, para lembrar quem eu sou.


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¹Fihi Ma Fihi: o livro do interior. Rumi. Rio de Janeiro: Edições Dervish, 1993, p. 112. Citação de Al-Mutannabi, Diwan.


²Mito e corpo: uma conversa com Joseph Campbeel. Keleman Stanley. São Paulo: Summus, 2001, p. 78.