Dívida tributária: inadimplência e crime

O tratamento penal da inadimplência tributária tem dado origem a exageros interpretativos que inflam a resposta a crimes de menor potencial ofensivo. A depender da articulação entre órgãos de investigação e o Poder Judiciário, o que seria a apuração de crimes com pena de até dois anos de detenção, sujeitas, portanto, a tratamento penal com raras possibilidades de encarceramento, acaba anabolizado por noções pouco técnicas de “fraude” e resultam em acusações que embutem apropriação indébita, lavagem de dinheiro e, de quebra, associação criminosa. As penas podem passar facilmente dos dez anos de prisão. O que está ocorrendo, basicamente, é uma equiparação “de fato” entre comportamentos que a Lei de Crimes Tributários quis tratar de maneira muito distinta: a sonegação praticada por meio de fraude, falsificações, omissões dolosas etc., de um lado, e, de outro, a pura e simples falta de recolhimento de tributo “descontado ou cobrado” pelo comerciante “na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;”. Mas o que torna, então, o inadimplemento tributário, isto é, a mera omissão do pagamento do tributo, em crime e, pior, em crime grave?


Dois fatores contribuíram muito para ameaçar a inadimplência tributária com a cadeia: a primeira veio da alteração da Lei de Lavagem de Dinheiro, em 2012 e a segunda com o ajuste interpretativo feito pelo STJ sobre a falta de recolhimento de ICMS próprio. É preciso somar as duas histórias para se compreender o barril de pólvora montado debaixo da inadimplência.


Em 2012, no calor da CPMI direcionada à investigação de “Carlinhos Cachoeira”, o Senado aprovou o texto final (em votação simbólica, destaque-se) da alteração da Lei de Lavagem de Ativos, de 1998. Até então, era considerado crime de lavagem de dinheiro a prática de atos como a ocultação ou dissimulação da origem de valores ou bens oriundos da prática de determinados crimes (terrorismo, crimes contra a administração pública, tráfico de drogas dentre outros). Com a alteração, passou a ser considerado crime de lavagem a ocultação ou dissimulação da origem de bens vinculados a qualquer prática criminosa. Curioso é que mesmo a prática de um delito de menor potencial ofensivo poderia vincular-se à lavagem de dinheiro (que prevê de três a dez anos de reclusão).


Mais recentemente, em agosto de 2018, o Superior Tribunal de Justiça orientou-se no entendimento de que a mera falta de recolhimento do ICMS próprio deveria ser tratado como crime (HC 399.109/SC), neutralizando a compreensão de que a falta de arrecadação do tributo seria um inadimplemento de repercussões meramente tributárias (considerava-se antes que a lei penal aplicava-se apenas às formas manifestas de apropriação que poderiam ocorrer por exemplo nos tributos sujeitos à Substituição Tributária). Em dezembro de 2019, no STF manteve a linha de entendimento, agregando a construção fluída de um conceito de devedor contumaz e doloso (RHC 163334).


Esses conceitos (um baseado numa leitura da lei de lavagem e outro vindo de construção jurisprudencial) somam-se numa mistura perigosa, onde o tributo não recolhido vira, nessa forma de interpretação, um “ativo” cuja movimentação, qualquer que seja ela, pode ser considerada como “proveito de crime” e, por sua vez, objeto de lavagem de ativos. A seguir esse raciocínio, qualquer distribuição de lucros de uma empresa inadimplente com o fisco – a matriz do raciocínio aqui é o ICMS – pode virar lavagem, num piscar de olhos.


Naturalmente, trata-se de uma noção equivocada do que seja a lavagem de ativos, que não é um delito produzido a partir de qualquer desdobramento natural de atividade econômica e muito menos pode ser confundido com o mero aproveitamento de algum suposto delito anterior. No contexto da inadimplência tributária, ela acaba se transformando numa forma obtusa de inflar a pena prevista pelo legislador para uma prática cujo grau de reprovabilidade já foi aquilatado: se a lei espera que a inadimplência tenha uma pena máxima de dois anos, não pode uma manobra interpretativa tentar embutir nela outro crime para acrescentar dez anos de pena máxima.


Enfim, a sonegação que se faz sem o emprego de fraude não é fraude. Deixar de recolher imposto devidamente apurado, com base em informações verídicas fornecidas pelo contribuinte não é um “esquema” e, se já é controverso o tratamento do mero inadimplemento como crime, pior ainda é projetar essa conduta na vitrine de grandes esquemas criminosos embutindo lavagem de ativos como pretexto para dizer que o fato é mais grave do que realmente é. Esse cenário, entretanto, equiparável ao emprego da prática vedada de “prisão por dívida”, deve passar por uma longa depuração judicial antes que um pouco mais de racionalidade e previsibilidade penal venham à tona. O problema é o estrago que a distorção das leis causa até que o cenário se estabilize.